segunda-feira, 30 de abril de 2018

Dê, nosso Beta.

Perdi a conta de quantas vezes fomos (eu e o Nel) solicitados a contar essa história!
Éramos recém casados e nosso primeiro dia dos namorados se aproximava. Eu sempre cultivei uma estranha mania de dar presente diferente...
Nada de meias, camisa, caneta, carteira. Tinha que ser algo criativo, pessoal, singular. Porque não um peixe? Achei que seria original.
Na loja havia uma incrível variedade de cores, tamanhos, espécies... Mas, com as últimas prestações do “buffet” ainda penduradas no cartão, a saída foi comprar um peixinho solitário: o Dê!

Enfeitei uma caixa de vidro (que serviria de aquário) com fitas isolantes coloridas para valorizar o presente e combiná-lo com as almofadas da sala. No cartão: “Meu Lindo, o nosso amor vive até em baixo d´água...”
O Nel ficou emocionado e acomodou o peixe ao lado da TV.

Dê era pacato, com ar intelectual. Assistia a filmes conosco e perambulava em círculo meio sem rumo. Quando cansado, boiava estático e admirava a porta cor de gelo da cozinha. 

Um dia notamos Dê mais gorducho e pesado. Suas nadadeiras mal se moviam e ele despencava ao fundo: Glub, glub glub...

Já era tarde da noite, não havia muito o que fazer. Fomos deitar e choramos o sofrimento do Dê abraçados... Colocamos o relógio para despertar às 5:00 do dia seguinte com o intuito de devolver o peixe ao seu lar e talvez salvá-lo.
Assim que o Nel dormiu levantei-me e transportei Dê para um balde grande com água mineral, limpinha... Era uma esperança.

Bem antes do despertador tocar, acordei e fui ver o Dê com medo dele já estar estufadinho. Para minha surpresa, lá estava o bravo peixe respirando meio de lado.
Pela manhã, guiamos até a avenida que margeava o córrego fedorento perto de casa. Era verão e ainda estava escuro. Saímos secretamente de nossa UTI móvel e fomos em direção à ribanceira. Eu, segurando em uma árvore e o cauteloso Nelsinho descendo com o balde na mão e as havaianas verdes nos pés. A operação era tensa, exigia astúcia e concentração.

Com a habilidade de um dentista e a responsabilidade de um recém casado, o meticuloso Nelsinho calculava cada passo e tentava firmar a ponta dos dedos no meio do capim alto.
A lama venceu e as legítimas derraparam lançando o Nelsinho a uma quase cambalhota... Após um brado de pavor, o valente Nelsinho lutou emocionado contra o gigante da gravidade. Com uma das mãos, agarrava-se aos tufos de mato que se despedaçavam assustadoramente e com a outra, mantinha o balde apertado no peito. 

No limite de suas forças, rendeu-se ao inevitável e suas nádegas deslizaram aos solavancos barranco abaixo. De forma indecente, lá foram ele, o balde, as havaianas e o Dê para dentro do riacho. Enquanto eu segurava um risinho, o desconcertado Nelsinho dava braçadas desajeitadas tentando alcançar os chinelos. O balde sumiu e o Dê... Ninguém viu!

Não foi fácil tirar o Nel do limo. Suas mãos deslizavam nervosas nas beiradas e eu não tinha vigor para resgatá-lo. Precisei conter a gargalhada, pois percebi que isso só aumentava a aflição do momento. A situação era trágica e depois de muita luta meu guerreiro descalço conseguiu sair do regato. Aquela água verde pingava por todo lado e o cheiro beirava o insuportável. 

A esta altura o sol já brilhava e passaram duas senhoras grisalhas caminhando ao nosso lado... Devem estar tentando entender aquela cena até hoje.
Missão cu(o)mprida! No carro, nenhum comentário - sei reconhecer quando o meu temperamental marido não quer conversa. Forramos o banco do carro com o tapete de borracha do chão e seguimos para casa mudos, com a certeza de ter dado uma morte digna ao nosso peixinho!



"In memorian"

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